Versão em português
[Artigo escrito por Marcos Sorrilha Pinheiro, Professor de História dos Estados Unidos no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca-SP.]
No dia 26 de maio de 1824, José Silvestre Rebello se apresentou ao presidente americano James Monroe, para tomar posse do cargo de Chargé d’Affaires do Brasil, um posto semelhante ao de embaixador brasileiro nos EUA, dando início oficial às relações diplomáticas entre os dois países. Como parte de sua estratégia para reforçar os laços entre as nações, no verão do ano seguinte, Rebello organizou uma excursão pela Virgínia, fazendo questão de passar pelas terras do ex-presidente James Madison para conhecê-lo.
A intenção de Rebello com o encontro não era meramente diplomática, mas uma forma de se integrar à cultura e à história do país que o acolhera. Como explica Álvaro da Costa Franco (2009, p. 13), “Silvestre Rebello procurou, logo ao chegar aos Estados Unidos, estabelecer vínculos com entidades culturais e científicas. Como reflexo desta atividade, foi feito membro honorário do Columbia Institute […] ao qual fez doações de livros e coleções botânicas”. Rebello sabia que havia resistências ao Brasil, por conta de sua opção pela monarquia e, por isso, era preciso demonstrar boa vontade para despertar no pragmatismo americano as oportunidades comerciais.
O responsável por intermediar o encontro foi Daniel Brent, então chefe de gabinete do Departamento de Estado, que recomendou a visita do embaixador brasileiro dessa maneira: “este senhor reside entre nós há vários anos, e nenhum agente estrangeiro já foi, ou é, mais estimado aqui do que ele; e é com base nisso, tanto quanto na sua amabilidade, que confio na minha desculpa pela liberdade que tomo”. Assim sendo, o encontro solicitado de fato aconteceu. Porém, Rebello não apenas conheceu Madison, mas também os outros ex-presidentes que viviam na Virgínia, Jefferson e Monroe, recém aposentado. Conforme Rebello descreveu em um de seus despachos feitos em 26 de agosto de 1825:
“Fiz uma visita aos três ex-presidentes, que vivem nestas vizinhanças, fui otimamente recebido, e achei Jefferson um sábio, que ainda conserva a pinta revolucionária; Madison, um diplomata polido, que ainda se não esqueceu de que a bandeira deve cobrir a propriedade; e Monroe, o que ele é: um excelente homem” (In: FRANCO, 2009, p. 273).
Coincidentemente, esses são os três nomes que estiveram mais ativos e dedicados à política externa dos EUA durante o período em que o Brasil experimentava, sem saber, o desenvolvimento de seu processo emancipatório. Como se sabe, Jefferson dedicou atenção redobrada ao Brasil no momento da transferência da corte portuguesa para o continente americano em 1808; Madison auxiliou Jefferson neste período, servindo como seu Secretário de Estado; enquanto Monroe acompanhou de perto o
desenvolvimento do levante independentista em Pernambuco, em 1817, além de reconhecer a independência do Brasil, em 1824. Municiados por seus diplomatas, escolheram não intervir na questão, mantendo a tradição americana daquela época inaugurada por George Washington. Mesmo assim, não deixaram de vislumbrar um bom relacionamento com o Brasil e a oportunidade de se converter em um parceiro de primeira hora.
Demoraria mais de um século para que essa parceria se convertesse em algo concreto. Ao longo do século XIX, os EUA não foram o parceiro preferencial do Brasil por motivos próprios da história de ambos os países na busca pela consolidação de seus modelos de estado e da forma como estabeleceram suas políticas externas: os EUA optaram pelo isolacionismo, enquanto o Brasil tomou a Europa como seu modelo ideal de modernidade. Isso começaria a mudar em 1889, com a conversão do Brasil de uma monarquia para uma república. A simpatia dos republicanos pelos EUA e seu modelo federativo foi explicitada pela escolha de uma nova alcunha para a nação: Estados Unidos do Brasil (nome que permaneceria de maneira oficial até o ano de 1968). Naquele mesmo momento, os EUA também passavam por uma mudança na formulação de suas políticas internacionais, principalmente no que diz respeito à sua maior participação no Oceano Pacífico e aproximação à América Latina. Coincidentemente, a Primeira Conferência Panamericana organizada pelos EUA com o objetivo de estabelecer laços comerciais com os vizinhos do Sul ocorreu em Washington, também em 1889.
Naquela oportunidade, a Argentina, principal economia da América do Sul, posicionou-se como principal entrave para que as tratativas avançassem e acordos de livre comércio fossem estabelecidos. A partir de então, os EUA viram na aproximação ao Brasil uma oportunidade para estabelecer um campo de influência na região que
fosse capaz de se contrapor aos argentinos. Para essa aproximação, nomes como o de Salvador de Mendonça e Joaquim Nabuco foram fundamentais. Nabuco era um grande defensor do Panamericanismo e foi embaixador brasileiro nos EUA entre os anos de 1905 e 1910. Depois dele, a diplomacia brasileira notabilizou-se por uma virada americanista com a participação de nomes que trabalharam ativamente para fortalecer tal relação, incluindo o próprio Oliveira Lima.
Desde então, o americanismo foi um traço marcante da política externa brasileira e os EUA passaram a ser não apenas o modelo de modernidade idealizada, como uma
grande referência cultural para os brasileiros de maneira geral. Tais laços se refletem não apenas na cultura, mas em parcerias econômicas e políticas estratégicas de cooperação global. Nem sempre de forma amistosa ou sem atritos, os duzentos anos das relações diplomáticas foram retratados de maneira completa no recente livro Uma parceria Bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos. Organizado pela professora Fernanda Magnotta em virtude do bicentenário da parceria entre os países, a obra foi publicada pela Fundação Alexandre Gusmão, selo editorial do Itamaraty, em maio de 2024.
O livro conta com textos produzidos por mais de duas dezenas de pesquisadores renomados nas áreas de História, Ciências Políticas e Relações Internacionais, além de
contar com um prefácio escrito pelo Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Dividido em três seções, passado, presente e futuro, a obra ajuda a conhecer não apenas o histórico do desenvolvimento dessa relação, mas também os desafios comuns que as duas nações possuem para as próximas décadas que se desenham repletas deinstabilidades. Como destaca a professora Magnotta (2024, p. 13):
“No alvorecer da efeméride que marca os 200 anos de estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, esta obra pretende servir a este justo propósito: contribuir para a construção de novas pontes desse entendimento recíproco. Assim, Uma Parceria Bicentenária oferece não apenas uma análise detalhada da relação entre os dois países ao longo de dois séculos, mas – nos segmentos “Passado”, “Presente” e “Futuro” – o livro aborda a transformação e os desafios desta interação bilateral.”
O livro possui uma versão em inglês e está disponível para download gratuito no site da Fundação Alexandre Gusmão. Para o leitor americano e interessado nos assuntos relacionados ao Brasil, trata-se, portanto, de uma obra fundamental para se compreender a história de uma parceria que teve início ainda em 1825, nas terras profundas da Virgínia, com o aperto de mão e reverência de um “estimado senhor”, com “um sábio revolucionário”, “um diplomata polido” e “um excelente homem”.
Referências Bibliográficas
BRENT, Daniel to James Madison, 29 July 1825.
FRANCO, Álvaro da Costa (org). Brasil-Estados Unidos, 1824-1829. Rio de
Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2009.
MAGNOTTA, Fernanda Petená (editor). A bicentennial partnership: past, present and
future of Brazil-United States relations. Brasília: FUNAG, 2024. Disponível para
download em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1278
English Version
[Article written by Marcos Sorrilha Pinheiro, Professor of United States History in the Department of History at São Paulo State University, Franca Campus]
On May 26, 1824, José Silvestre Rebello presented himself to American President James Monroe to take office as Chargé d’Affaires of Brazil, a position similar to that of Brazilian ambassador to the USA, officially initiating diplomatic relations between the two countries. As part of his strategy to strengthen ties between the nations, in the summer of the following year, Rebello organized a tour of Virginia, making a point of visiting the lands of former President James Madison to meet him. Rebello’s intention with the meeting was not merely diplomatic but a way to integrate into the culture and history of the country that had welcomed him. As Álvaro da Costa Franco (2009, p. 13) explains, “Silvestre Rebello sought, as soon as he arrived in the United States, to establish links with cultural and scientific organizations. As a result of this activity, he was made an honorary member of the Columbia Institute […] to which he donated books and botanical collections.” Rebello knew there was resistance to Brazil because of its choice of monarchy and, therefore, it was necessary to demonstrate goodwill to awaken commercial opportunities in American pragmatism.
The person responsible for mediating the meeting was Daniel Brent, Chief of Staff of the Department of State, who recommended the Brazilian ambassador’s visit writing: “this Gentleman has resided amongst us several years, and no foreign Agent ever has been, or is more esteemed here, than himself; and it is upon this ground, as much as your kindness, that I rely for my excuse, in the Liberty I thus take.” Thus, the requested meeting indeed took place. However, Rebello not only met Madison, but also the other former presidents who lived in Virginia, Jefferson, and Monroe, newly retired. As Rebello described in one of his dispatches made on August 26, 1825:
“I had the pleasure of visiting the three former presidents, who reside in this area. I was graciously received and found Jefferson to be a wise man, still imbued with the revolutionary spirit. Madison, a polished diplomat, demonstrated his commitment to safeguarding the flag and protecting property. Monroe, in his own way, is an excellent man (Franco, 2009, 273).”
Coincidentally, these are the three names that were most active and dedicated to U.S. foreign policy during the period when Brazil was unknowingly experiencing the development of its emancipation process. As is known, Jefferson paid extra attention to Brazil at the time of the Portuguese court’s transfer to the American continent in 1808; Madison assisted Jefferson during this period, serving as his Secretary of State; while Monroe closely followed the development of the independence uprising in Pernambuco in 1817, in addition to recognizing Brazil’s independence in 1824. Helped by their diplomats, they chose not to intervene in the matter, maintaining the American tradition of that time inaugurated by George Washington. Even so, they did not fail to envision a good relationship with Brazil and the opportunity to become a first-rate partner.
It would take more than a century for this partnership to become something concrete. Throughout the 19th century, the USA was not Brazil’s preferred partner due to the histories of both countries in their quest to consolidate their state models and the way they established their foreign policies: the USA opted for isolationism, while Brazil took Europe as its ideal model of modernity. This would begin to change in 1889, with Brazil’s conversion from a monarchy to a republic. The republicans’ sympathy for the USA and its federal model was made explicit by the choice of a new formal name for the nation: United States of Brazil (a name that remained official until 1968). At that same time, the USA was also undergoing a shift in its international policy formulation, particularly regarding its increased involvement in the Pacific Ocean and rapprochement with Latin America. Coincidentally, the First Pan-American Conference organized by the USA to establish commercial ties with southern neighbors also took place in Washington in 1889. On that occasion, Argentina, the main economy in South America, positioned itself as the main obstacle for the negotiations to advance and free trade agreements to be established.
From then on, the USA saw an approach to Brazil as an opportunity to establish a field of influence in the region that could counter the Argentinians. For this rapprochement, names such as Salvador de Mendonça and Joaquim Nabuco were fundamental. Nabuco was a great advocate of Pan-Americanism and served as Brazilian ambassador to the USA from 1905 to 1910. After him, Brazilian diplomacy became notable for an Americanist turn with the participation of figures who worked actively to strengthen this relationship, including Oliveira Lima himself.
Since then, Americanism has been a prominent feature of Brazilian foreign policy, and the USA has become not only the model of idealized modernity but also a major cultural reference for Brazilians in general. These ties are reflected not only in culture but also in economic partnerships and strategic political cooperation globally. Not always in a friendly manner or without friction, the two hundred years of diplomatic relations were comprehensively depicted in the recent book A Bicentennial Partnership: Past, Present, and Future of Brazil-United States Relations. Organized by Professor Fernanda Magnotta in commemoration of the bicentennial of the partnership between the countries, the work was published by the Fundação Alexandre Gusmão, the editorial branch of Itamaraty, in May 2024.
The book includes texts produced by more than two dozen renowned researchers in the fields of History, Political Science, and International Relations, and features a foreword written by the Minister of Foreign Affairs, Mauro Vieira. Divided into three sections—past, present, and future—the work helps to understand not only the history of the development of this relationship but also the common challenges that the two nations face in the coming decades, which are likely to be full of instabilities. As Professor Magnotta (2024, p. 13) emphasizes:
“On the verge of the 200th anniversary of the establishment of diplomatic relations between the two countries, this book intends to serve this very purpose: to help build new bridges of mutual understanding. Thus, A Bicentennial Partnership offers not only a detailed analysis of the relationship between the two countries over two centuries, but — in the segments “Past,” “Present” and “Future” — the book addresses the transformation and challenges of this complex bilateral interaction with its sights also set on what lies ahead.”
The book has an English version and is available for free download on the Fundação Alexandre Gusmão website. For the American reader and those interested in matters related to Brazil, it is therefore an essential work to understand the history of a partnership that began back in 1825, in the deep lands of Virginia, with the handshake and reverence of an “esteemed gentleman,” with “a wise revolutionary,” “a polished diplomat,” and “an excellent man.”
References
BRENT, Daniel to James Madison, 29 July 1825
FRANCO, Álvaro da Costa (org). Brasil-Estados Unidos, 1824-1829. Rio de
Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2009.
MAGNOTTA, Fernanda Petená (editor). A bicentennial partnership: past, present and future of Brazil-United States relations. Brasília: FUNAG, 2024. Available for free download here: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1278