Duzentos Anos da Primeira Constituição do Brasil

[Artigo escrito por Neuma Brilhante Rodrigues professora doutora de História do Brasil na Universidade de Brasília (UnB).]

No dia 25 de março de 1824, foi outorgada a primeira Constituição brasileira. Naquele dia, na Capela Real, no Rio de Janeiro, o Imperador d. Pedro I e a Imperatriz Leopoldina juraram o texto constitucional, acompanhados por membros do Senado da Câmara do Rio de Janeiro e do governo imperial. Nos dias seguintes, foi determinado que cerimônias similares fossem promovidas pelas Câmaras Municipais e órgãos do governo. Entrava assim em vigor a carta constitucional brasileira mais longeva, vindo a ser revogada apenas em 1889, com o final do regime monárquico e a adoção da república no país.

Victor Meirelles, Juramento da Princesa Isabel. 1875 – Museu Imperial de Petrópolis

A carta de 1824 confirmou a organização do Brasil como monarquia representativa, católica e governada pela Casa de Bragança. Ela estabeleceu ainda a divisão de poderes, adotou o bicameralismo e estipulou amplos direitos fundamentais. No arranjo constitucional, garantias de direitos individuais e divisão de poderes foram equacionados com dispositivos centralizados na figura do Imperador, aspecto entendido como importante para se evitar a eclosão de guerra civil e a fragmentação do novo país. 

O texto foi elaborado pelo Conselho de Estado. Contudo, sua base foi o projeto que começara a ser discutido pela Assembleia Constituinte, dissolvida pelo Imperador dois dias antes da criação daquele Conselho, em novembro de 1823. Para entendermos o significado daquela cerimônia solene de juramento e da própria carta, assim, é preciso recuar um pouco na história brasileira, pois ela seria o ápice da breve experiência constitucionalista.

Marc Ferrez, Busto posado de Pedro I. Originalmente executado em gesso no Rio de Janeiro, ca. 1826; fundido em bronze em Paris por Fontaine. – Oliveira Lima Library

Em janeiro de 1821, notícias do Vintismo, movimento constitucionalista iniciado na cidade do Porto, em Portugal, chegaram em terras do então Reino Unido do Brasil, recebendo rápida adesão de membros das elites e do povo. Após o chamamento da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino de Portugal, foram criadas juntas de governo provisório nas províncias brasileiras, responsáveis pelas eleições de representantes para as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, que se reuniram em Lisboa, com a missão de elaborar uma constituição para os portugueses dos dois lados do Atlântico. 

O momento era de intensos debates sobre os princípios liberais e constitucionais e diferentes expectativas de futuro e marcado pela intensa ressignificação do vocabulário político.  O próprio termo Constituição era então ressignificado e, no mundo luso-brasileiro da década de 1820, ganhou destaque sua compreensão como norma prescritiva, ou seja, pragmática, que deveria orientar a construção de projetos de futuro do novo Estado Nacional. Assim, constituição era entendida como um sistema de normas capaz de garantir a observância dos direitos individuais, a construção de relações mais igualitárias e a afirmação soberania da nação.

A elaboração de arranjo institucional que fortalecesse os laços entes as duas principais partes do mundo luso-brasileiro pelas Cortes de Lisboa, contudo, fracassou e os desacordos quanto ao lugar que Portugal e Brasil ocupariam vieram a legitimar a independência do Brasil ainda em 1822, sob a liderança do então príncipe regente. 

Jean Baptiste Debret, Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil – Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement. 1816-31 – Oliveira Lima Library

A convocação para a assembleia constituinte no Brasil se deu em 3 junho de 1822, antes da formalização da independência. De fato, a formação de uma assembleia brasiliana era apresentada como complementar à ação das Cortes de Lisboa e não como separação formal em relação a Portugal. Contudo, diante ao crescente desgaste de parte das elites brasileiras frente às ações das Cortes lisboetas, essa ação fortaleceu a figura de d. Pedro como alternativa no caso da formalização da separação, o que viria a ocorrer na segunda metade daquele ano. 

A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império foi aberta em 03 de maio de 1823. Logo em seu início, foi criada a comissão da Constituição, formada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Antônio Luís Pereira da Cunha, Pedro de Araújo, José Ricardo da Costa Aguiar, Manuel Ferreira da Câmara, Francisco Muniz Tavares, e José Bonifácio de Andrada e Silva, com destaque para o primeiro. A comissão apresentou o projeto de constituição em setembro daquele ano, dando início aos trabalhos constitucionais propriamente ditos, uma vez que nos meses anteriores a Assembleia tratou da legislação infraconstitucional.

John Armitage, José Bonifácio de Andrada e Silva, The History of Brazil: From the Period of the Arrival of the Braganza Family in 1808, to the Abdication of Don Pedro the First in 1831 – Vol I. 1836. – Oliveira Lima Library

Desde as sessões preparatórias acontecidas em abril, a plenária foi palco de disputas sobre o papel do Estado, as liberdades individuais, os direitos de cidadão, operacionalização da justiça entre outros temas. Entre os pontos mais críticos estava o estabelecimento dos poderes, as relações entre eles e o lugar a ser ocupado pelo Imperador. O acirramento dos embates dentro da assembleia e entre o monarca e parte dos deputados levou ao já mencionado fechamento da constituinte por ordem do Imperador, com o apoio das tropas, que cercaram o prédio onde os deputados se reuniam.

Várias peças legais emitidas naquele contexto por d. Pedro I buscaram realçar o compromisso constitucional do Imperador, mas também sua primazia diante dos demais poderes. De certo modo, a própria constituição era apresentada com dádiva oferecida pelo soberano aos seus súditos. O decreto de fechamento da assembleia, de 12 de novembro, por exemplo, dizia: 

Havendo eu convocado, como tinha direito de convocar, a Assembléa Geral Constituinte e Legislativa,  (…) e havendo esta Assembléa perjurado ao tão solemne juramento, que prestou á Nação (…), hei por bem, como Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil, dissolver a mesma Assembléa, e convocar já uma outra (…) a qual deverá trabalhar sobre o projecto de constituição, que eu lhe hei de em breve apresentar; que será duplicadamente mais liberal, do que o que a extincta Assembléa acabou de fazer.  (…) (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1823, Página 85, Vol. 1. 

O novo projeto de constituição seria elaborado por Conselho criado com esta finalidade, no dia 13 de novembro, e que contava com seis deputados recém-destituídos entre os seus nove membros. Fortemente baseada no projeto anterior, a nova proposta foi encaminhada ainda em dezembro de 1823 às Câmaras Municipais, para análise e acolhimento de sugestões.

Segundo o Decreto de 11 de março de 1824, o Imperador resolvera marcar para o dia 25 daquele mês o juramento da nova constituição, em resposta solicitação de “tantas Câmaras do Império, que já formam a maioridade do povo brasileiro”. As manifestações favoráveis de dessas Câmaras, em particular, do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, enfim, foram usadas para legitimação da Constituição ao serem apresentadas como manifestação da vontade popular, em uma ritualística típica da noção de representação do Antigo Regime.

D. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

A Carta outorgada apresentou poucas, mas importantes, alterações em relação ao texto da constituinte. Quanto à divisão dos poderes, buscou-se reforçar a autoridade régia, com a inclusão do Poder Moderador e seu direito de dissolução da Câmara dos Deputados. Reafirmou o bicameralismo e o caráter vitalício do Senado, cujos membros seriam escolhidos pelo Imperador a partir de lista tríplice. Observa-se, contudo, alteração na forma de montagem da lista: o projeto original estabelecia que a mesma seria eleita pelos próprios senadores, enquanto a Constituição determinou a eleição nos mesmos moldes da escolha dos deputados, ou seja, pelos eleitores.

D. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

Outra alteração diz respeito à definição de quem seria cidadão no Brasil. O texto constitucional compreendeu que otítulo deveria ser atribuído a todos as pessoas livres (ingênuas ou libertas) nascidas no Brasil, enquanto o projeto definia a distinção entre brasileiros e cidadãos brasileiros, estes como detentores de direitos políticos. Segundo o Título 2º da Constituição, a distinção se daria entre cidadãos passivos, detentores de direitos civis, e cidadãos ativos, qualificados para exercer o seu poder político por meio do sistema eleitoral. A solução encontrada pelo Conselho de Estado partiu da compreensão de que a distinção entre cidadão ativo e cidadão passivo era como potencialmente transitória, uma vez que a sociedade política e a sociedade civil eram de mesma natureza, e estava de acordo com as expectativas de mobilidade social decorrentes do fim da sociedade estamental, além de localizar a igualdade entre os cidadãos nas expectativas do futuro do país.

Todo cidadão detinha, assim, poder político, mas este estava excepcionalmente suspenso para aqueles que não alcançavam os requisitos necessários para seu exercício. O exercício dos direitos políticos era assim definido a partir das noções de capacidade e merecimento, que, por sua vez, poderiam ser socialmente reconhecidos pela posse de bens ou por educação. A inclusão dos homens libertos no rol dos possíveis cidadãos ativos considerava a manumissão como prova de suas qualidades. Devemos enfatizar que o homem escravizado que alcançasse a liberdade e tivesse a renda necessária tornava-se, o que era vetado às mulheres, cuja exclusão do processo eleitoral era vista de modo tão natural que nem se encontrava  na constituição ou demais peças normativas que regulamentavam as eleições.

ID. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

Essa perspectiva, por exemplo, inibiu a legalização da discriminação da população por razões raciais, a despeito do preconceito de cor já marcar as relações sociais e institucionais no Brasil daquele momento. Isso fica evidente na listagem de direitos civis e políticos, apresentados no Artigo 179, no seu item 13, que afirma, como princípio, a igualdade da lei para todos e a admissão em cargos públicos a partir do critério único de talentos e virtudes. Pontuar tais princípios não significa ignorar as injustiças e favorecimentos ocorridos na vida cotidiana da sociedade brasileira, contudo, consideramos significativo ao considerarmos o caráter constituinte da lei.

Por fim, vale ressaltar que a já mencionada longevidade da Carta de 1824 está relacionada à sua plasticidade e adaptabilidade. Inspirada no constitucionalismo inglês, a carta definiu, em seu Artigo 178, que apenas era constitucional aquilo que dizia respeito “aos limites e atribuições respectivas dos Poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos.”  Assim, por ritos parlamentares ordinários, foram promovidas diversas reformas eleitorais, inclusive com a adoção da eleição direta, em 1881, foi criada a figura do Presidente do Conselho de Ministros, se atribuiu a condição de ingênuas a crianças filhas de mães escravizadas pela Lei Rio Branco (1871) e foi abolida a escravidão (1888). O Ato Adicional de 1834 veio a ser a única experiência de emenda constitucional por alterar a constituição do poder legislativo.

Referências 

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Sobre o Autor

Neuma Brilhante, professora doutora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), atua na área de História do Brasil Império. Suas pesquisas se concentram na formação e atuação de elites políticas em fins do Antigo Regime luso-brasileiro e formação e consolidação do Império Brasileiro.

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