Uma Parceria Bicentenária/A Bicentennial Partnership

Versão em português

[Artigo escrito por Marcos Sorrilha Pinheiro, Professor de História dos Estados Unidos no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca-SP.]

No dia 26 de maio de 1824, José Silvestre Rebello se apresentou ao presidente americano James Monroe, para tomar posse do cargo de Chargé d’Affaires do Brasil, um posto semelhante ao de embaixador brasileiro nos EUA, dando início oficial às relações diplomáticas entre os dois países. Como parte de sua estratégia para reforçar os laços entre as nações, no verão do ano seguinte, Rebello organizou uma excursão pela Virgínia, fazendo questão de passar pelas terras do ex-presidente James Madison para conhecê-lo.

A intenção de Rebello com o encontro não era meramente diplomática, mas uma forma de se integrar à cultura e à história do país que o acolhera. Como explica Álvaro da Costa Franco (2009, p. 13), “Silvestre Rebello procurou, logo ao chegar aos Estados Unidos, estabelecer vínculos com entidades culturais e científicas. Como reflexo desta atividade, foi feito membro honorário do Columbia Institute […] ao qual fez doações de livros e coleções botânicas”. Rebello sabia que havia resistências ao Brasil, por conta de sua opção pela monarquia e, por isso, era preciso demonstrar boa vontade para despertar no pragmatismo americano as oportunidades comerciais.

O responsável por intermediar o encontro foi Daniel Brent, então chefe de gabinete do Departamento de Estado, que recomendou a visita do embaixador brasileiro dessa maneira: “este senhor reside entre nós há vários anos, e nenhum agente estrangeiro já foi, ou é, mais estimado aqui do que ele; e é com base nisso, tanto quanto na sua amabilidade, que confio na minha desculpa pela liberdade que tomo”. Assim sendo, o encontro solicitado de fato aconteceu. Porém, Rebello não apenas conheceu Madison, mas também os outros ex-presidentes que viviam na Virgínia, Jefferson e Monroe, recém aposentado. Conforme Rebello descreveu em um de seus despachos feitos em 26 de agosto de 1825:

“Fiz uma visita aos três ex-presidentes, que vivem nestas vizinhanças, fui otimamente recebido, e achei Jefferson um sábio, que ainda conserva a pinta revolucionária; Madison, um diplomata polido, que ainda se não esqueceu de que a bandeira deve cobrir a propriedade; e Monroe, o que ele é: um excelente homem” (In: FRANCO, 2009, p. 273).

Coincidentemente, esses são os três nomes que estiveram mais ativos e dedicados à política externa dos EUA durante o período em que o Brasil experimentava, sem saber, o desenvolvimento de seu processo emancipatório. Como se sabe, Jefferson dedicou atenção redobrada ao Brasil no momento da transferência da corte portuguesa para o continente americano em 1808; Madison auxiliou Jefferson neste período, servindo como seu Secretário de Estado; enquanto Monroe acompanhou de perto o
desenvolvimento do levante independentista em Pernambuco, em 1817, além de reconhecer a independência do Brasil, em 1824. Municiados por seus diplomatas, escolheram não intervir na questão, mantendo a tradição americana daquela época inaugurada por George Washington. Mesmo assim, não deixaram de vislumbrar um bom relacionamento com o Brasil e a oportunidade de se converter em um parceiro de primeira hora.

Demoraria mais de um século para que essa parceria se convertesse em algo concreto. Ao longo do século XIX, os EUA não foram o parceiro preferencial do Brasil por motivos próprios da história de ambos os países na busca pela consolidação de seus modelos de estado e da forma como estabeleceram suas políticas externas: os EUA optaram pelo isolacionismo, enquanto o Brasil tomou a Europa como seu modelo ideal de modernidade. Isso começaria a mudar em 1889, com a conversão do Brasil de uma monarquia para uma república. A simpatia dos republicanos pelos EUA e seu modelo federativo foi explicitada pela escolha de uma nova alcunha para a nação: Estados Unidos do Brasil (nome que permaneceria de maneira oficial até o ano de 1968). Naquele mesmo momento, os EUA também passavam por uma mudança na formulação de suas políticas internacionais, principalmente no que diz respeito à sua maior participação no Oceano Pacífico e aproximação à América Latina. Coincidentemente, a Primeira Conferência Panamericana organizada pelos EUA com o objetivo de estabelecer laços comerciais com os vizinhos do Sul ocorreu em  Washington, também em 1889.

Naquela oportunidade, a Argentina, principal economia da América do Sul, posicionou-se como principal entrave para que as tratativas avançassem e acordos de livre comércio fossem estabelecidos. A partir de então, os EUA viram na aproximação ao Brasil uma oportunidade para estabelecer um campo de influência na região que
fosse capaz de se contrapor aos argentinos. Para essa aproximação, nomes como o de Salvador de Mendonça e Joaquim Nabuco foram fundamentais. Nabuco era um grande defensor do Panamericanismo e foi embaixador brasileiro nos EUA entre os anos de 1905 e 1910. Depois dele, a diplomacia brasileira notabilizou-se por uma virada americanista com a participação de nomes que trabalharam ativamente para fortalecer tal relação, incluindo o próprio Oliveira Lima.

Desde então, o americanismo foi um traço marcante da política externa brasileira e os EUA passaram a ser não apenas o modelo de modernidade idealizada, como uma
grande referência cultural para os brasileiros de maneira geral. Tais laços se refletem não apenas na cultura, mas em parcerias econômicas e políticas estratégicas de cooperação global. Nem sempre de forma amistosa ou sem atritos, os duzentos anos das relações diplomáticas foram retratados de maneira completa no recente livro Uma parceria Bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos. Organizado pela professora Fernanda Magnotta em virtude do bicentenário da parceria entre os países, a obra foi publicada pela Fundação Alexandre Gusmão, selo editorial do Itamaraty, em maio de 2024.

Uma Parceria Bicentenária, Fundação Alexandre Gusmão

O livro conta com textos produzidos por mais de duas dezenas de pesquisadores renomados nas áreas de História, Ciências Políticas e Relações Internacionais, além de
contar com um prefácio escrito pelo Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Dividido em três seções, passado, presente e futuro, a obra ajuda a conhecer não apenas o histórico do desenvolvimento dessa relação, mas também os desafios comuns que as duas nações possuem para as próximas décadas que se desenham repletas deinstabilidades. Como destaca a professora Magnotta (2024, p. 13):

“No alvorecer da efeméride que marca os 200 anos de estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, esta obra pretende servir a este justo propósito: contribuir para a construção de novas pontes desse entendimento recíproco. Assim, Uma Parceria Bicentenária oferece não apenas uma análise detalhada da relação entre os dois países ao longo de dois séculos, mas – nos segmentos “Passado”, “Presente” e “Futuro” – o livro aborda a transformação e os desafios desta interação bilateral.”

O livro possui uma versão em inglês e está disponível para download gratuito no site da Fundação Alexandre Gusmão. Para o leitor americano e interessado nos assuntos relacionados ao Brasil, trata-se, portanto, de uma obra fundamental para se compreender a história de uma parceria que teve início ainda em 1825, nas terras profundas da Virgínia, com o aperto de mão e reverência de um “estimado senhor”, com “um sábio revolucionário”, “um diplomata polido” e “um excelente homem”.

 

Referências Bibliográficas

BRENT, Daniel to James Madison, 29 July 1825.

FRANCO, Álvaro da Costa (org). Brasil-Estados Unidos, 1824-1829. Rio de
Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2009.

MAGNOTTA, Fernanda Petená (editor). A bicentennial partnership: past, present and
future of Brazil-United States relations. Brasília: FUNAG, 2024. Disponível para
download em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1278

 

English Version

[Article written by Marcos Sorrilha Pinheiro, Professor of United States History in the Department of History at São Paulo State University, Franca Campus]

On May 26, 1824, José Silvestre Rebello presented himself to American President James Monroe to take office as Chargé d’Affaires of Brazil, a position similar to that of Brazilian ambassador to the USA, officially initiating diplomatic relations between the two countries. As part of his strategy to strengthen ties between the nations, in the summer of the following year, Rebello organized a tour of Virginia, making a point of visiting the lands of former President James Madison to meet him. Rebello’s intention with the meeting was not merely diplomatic but a way to integrate into the culture and history of the country that had welcomed him. As Álvaro da Costa Franco (2009, p. 13) explains, “Silvestre Rebello sought, as soon as he arrived in the United States, to establish links with cultural and scientific organizations. As a result of this activity, he was made an honorary member of the Columbia Institute […] to which he donated books and botanical collections.” Rebello knew there was resistance to Brazil because of its choice of monarchy and, therefore, it was necessary to demonstrate goodwill to awaken commercial opportunities in American pragmatism.

The person responsible for mediating the meeting was Daniel Brent, Chief of Staff of the Department of State, who recommended the Brazilian ambassador’s visit writing: “this Gentleman has resided amongst us several years, and no foreign Agent ever has been, or is more esteemed here, than himself; and it is upon this ground, as much as your kindness, that I rely for my excuse, in the Liberty I thus take.” Thus, the requested meeting indeed took place. However, Rebello not only met Madison, but also the other former presidents who lived in Virginia, Jefferson, and Monroe, newly retired. As Rebello described in one of his dispatches made on August 26, 1825:

“I had the pleasure of visiting the three former presidents, who reside in this area. I was graciously received and found Jefferson to be a wise man, still imbued with the revolutionary spirit. Madison, a polished diplomat, demonstrated his commitment to safeguarding the flag and protecting property. Monroe, in his own way, is an excellent man (Franco, 2009, 273).”

Coincidentally, these are the three names that were most active and dedicated to U.S. foreign policy during the period when Brazil was unknowingly experiencing the development of its emancipation process. As is known, Jefferson paid extra attention to Brazil at the time of the Portuguese court’s transfer to the American continent in 1808; Madison assisted Jefferson during this period, serving as his Secretary of State; while Monroe closely followed the development of the independence uprising in Pernambuco in 1817, in addition to recognizing Brazil’s independence in 1824. Helped by their diplomats, they chose not to intervene in the matter, maintaining the American tradition of that time inaugurated by George Washington. Even so, they did not fail to envision a good relationship with Brazil and the opportunity to become a first-rate partner.

It would take more than a century for this partnership to become something concrete. Throughout the 19th century, the USA was not Brazil’s preferred partner due to the histories of both countries in their quest to consolidate their state models and the way they established their foreign policies: the USA opted for isolationism, while Brazil took Europe as its ideal model of modernity. This would begin to change in 1889, with Brazil’s conversion from a monarchy to a republic. The republicans’ sympathy for the USA and its federal model was made explicit by the choice of a new formal name for the nation: United States of Brazil (a name that remained official until 1968). At that same time, the USA was also undergoing a shift in its international policy formulation, particularly regarding its increased involvement in the Pacific Ocean and rapprochement with Latin America. Coincidentally, the First Pan-American Conference organized by the USA to establish commercial ties with southern neighbors also took place in Washington in 1889. On that occasion, Argentina, the main economy in South America, positioned itself as the main obstacle for the negotiations to advance and free trade agreements to be established.

From then on, the USA saw an approach to Brazil as an opportunity to establish a field of influence in the region that could counter the Argentinians. For this rapprochement, names such as Salvador de Mendonça and Joaquim Nabuco were fundamental. Nabuco was a great advocate of Pan-Americanism and served as Brazilian ambassador to the USA from 1905 to 1910. After him, Brazilian diplomacy became notable for an Americanist turn with the participation of figures who worked actively to strengthen this relationship, including Oliveira Lima himself.

Since then, Americanism has been a prominent feature of Brazilian foreign policy, and the USA has become not only the model of idealized modernity but also a major cultural reference for Brazilians in general. These ties are reflected not only in culture but also in economic partnerships and strategic political cooperation globally. Not always in a friendly manner or without friction, the two hundred years of diplomatic relations were comprehensively depicted in the recent book A Bicentennial Partnership: Past, Present, and Future of Brazil-United States Relations. Organized by Professor Fernanda Magnotta in commemoration of the bicentennial of the partnership between the countries, the work was published by the Fundação Alexandre Gusmão, the editorial branch of Itamaraty, in May 2024.

A Bicentennial Partnership, Fundação Alexandre Gusmão

The book includes texts produced by more than two dozen renowned researchers in the fields of History, Political Science, and International Relations, and features a foreword written by the Minister of Foreign Affairs, Mauro Vieira. Divided into three sections—past, present, and future—the work helps to understand not only the history of the development of this relationship but also the common challenges that the two nations face in the coming decades, which are likely to be full of instabilities. As Professor Magnotta (2024, p. 13) emphasizes:

“On the verge of the 200th anniversary of the establishment of diplomatic relations between the two countries, this book intends to serve this very purpose: to help build new bridges of mutual understanding. Thus, A Bicentennial Partnership offers not only a detailed analysis of the relationship between the two countries over two centuries, but — in the segments “Past,” “Present” and “Future” — the book addresses the transformation and challenges of this complex bilateral interaction with its sights also set on what lies ahead.”

The book has an English version and is available for free download on the Fundação Alexandre Gusmão website. For the American reader and those interested in matters related to Brazil, it is therefore an essential work to understand the history of a partnership that began back in 1825, in the deep lands of Virginia, with the handshake and reverence of an “esteemed gentleman,” with “a wise revolutionary,” “a polished diplomat,” and “an excellent man.”

 

References

BRENT, Daniel to James Madison, 29 July 1825

FRANCO, Álvaro da Costa (org). Brasil-Estados Unidos, 1824-1829. Rio de

Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2009.

MAGNOTTA, Fernanda Petená (editor). A bicentennial partnership: past, present and future of Brazil-United States relations. Brasília: FUNAG, 2024. Available for free download here: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1278

Bento Teixeira e a Prosopopeia

[Artigo escrito por Eneida Beraldi Ribeiro historiadora e pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia]

Bento Teixeira (1560-1600), primeiro poeta brasileiro a ter uma obra publicada foi descoberto através das Confissões e Denunciações da Bahia e Pernambuco, publicados por Paulo Prado entre 1925 e 1929.  Por muito tempo acreditou-se na existência de um Bento Teixeira Pinto que seria autor da Prosopopeia e de uma outra obra publicada com ela no ano de 1601, em Lisboa: Naufrágio Que passou Jorge de Albuquerque Coelho e dos Diálogos das Grandezas do Brasil.

Através desses documentos, surgiu um Bento Teixeira cristão novo, natural da cidade do Porto, mas residente no Brasil desde tenra idade

Prosopopea, Bento Teixeira

e réu da Inquisição de Lisboa a partir de 1595. No Brasil, foi estudante das escolas da Companhia de Jesus nas quais terminou os cursos de Filosofia e Teologia. Tornou-se professor particular e em suas escolas recebia alunos das famílias abastadas das regiões onde morou (Espírito Santo, Rio de Janeiro, Bahia, Ilhéus, Vila de Cosme e Damião e Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco) (Processo 5206). Ao mesmo tempo em que ministrava aulas, acompanhava o comércio, herdado do pai, com um irmão mais moço. Tinha gênio forte e conquistava amizades duradouras, mas também entrava em conflitos, às vezes corporais, com quem se desentendia (Ribeiro, 2017:88-89). Casado com uma mulher cristã velha (sem ascendentes judeus em sua árvore genealógica), foi infeliz nesse casamento. Traído constantemente, matou a esposa. No entanto, Bento Teixeira não foi preso por matar a mulher, mas por crimes julgados pelo Santo Ofício português em suas ações no Brasil (Ribeiro, 2017:96-97).

O poeta foi preso em Pernambuco no ano de 1595 e levado a Lisboa. O seu processo traz textos anexos porque os Inquisidores lhe deram a oportunidade de expressar o seu suposto arrependimento em textos de próprio punho que nos chama a atenção tanto  pela  quantidade quanto pela complexidade. Nestes escritos, transparecem algumas características do cotidiano colonial brasileiro.  Bento Teixeira reelaborou, por meio da memória, passagens da história e trouxe à tona aspectos de uma sociedade, revelando as tensões entre cristãos velhos e novos e as práticas judaicas que ainda estavam vivas no final do século XVI, apesar das proibições impostas pelos reis ibéricos. (Ribeiro, 2017:16).

Além de descrever suas relações com homens e mulheres no Brasil, Bento Teixeira relatou conversas com outros presos da Inquisição e descreveu-nos um pouco do que seria a vida no cárcere. Seus escritos nos remetem às celas, deixando entrever uma intensa comunicação, feita através de códigos que possibilitavam aos réus conversarem, enviarem mensagens para dentro e para fora da prisão e até planejarem casamentos (Ribeiro, 2017:116-117).

Bento Teixeira saiu no Auto de Fé no ano de 1599. Foi uma cerimônia interna, já que a peste que grassava Lisboa, impediu o espetáculo público. Sua pena foi de cárcere perpétuo. Para a Inquisição esse termo significava que o réu teria que morar em um bairro determinado pelos Inquisidores durante o resto de sua vida e deveria usar um manto (sambenito), o hábito penitencial, que o distinguia como sentenciado pelo Santo Ofício. Não temos registro de sua vida fora da prisão após o auto de fé. Bento Teixeira voltou doente e sem meios de curar-se. Procurou abrigo nos mesmos cárceres onde adquirira a doença. Por fim, a morte no ano de 1600. O médico do Santo Ofício escreveu na página rosto de seu processo: “É morto Bento Teixeira”. Observara antes que ele fora encontrado na cela cuspindo sangue e que necessitava de cuidados (Processo 5206). Estes, se houve, não foram suficientes.

Escritos de Bento Teixeira

No ano de 1601, é editado em Lisboa, o poema de sua autoria: Prosopopeia junto ao Naufrágio Que passou Jorge de Albuquerque Coelho de autoria de Afonso Luís Piloto e Antonio de Castro (Souza, 1972: 46). Diálogos das Grandezas do Brasil foi escrito por  Ambrósio Fernandes Brandão. Outros poemas e sonetos à Virgem que Bento Teixeira afirmou ter entregue ao Inquisidor, não foram anexados ao Processo e deles não temos ideia de onde possam estar, se resistiram ao tempo.

Prosopopeia, escrita em louvor a Jorge de Albuquerque, Governador Geral de Pernambuco, relata em tom épico a natureza privilegiada da terra que este administrou temporariamente, a luta contra os índios, o naufrágio pelo qual passou, quando voltava a Portugal, e a sua heroica resistência ao lado de D. Sebastião, durante a batalha de Alcácer Quibir, sua prisão e posterior resgate (Sousa, 1972: 22-23). Considerada como documento histórico por alguns analistas a obra revela o homem Bento Teixeira e a vida pernambucana do final do século XVI (Siqueira,1972:418). Na Prosopopeia, transparecem características judaicas na ideia de um Deus único e criador da vida, as diásporas, heroísmo dos antepassados, resistência, lealdade, sacrifício para se alcançar o direito à Terra Prometida e Sebastianismo.

Bento Teixeira com esse texto inaugura uma espécie de Barroco como crítica de oposição na poesia colonial brasileira (Costigan, 1997: 36). Prosopopeia é o texto de um homem dividido e angustiado com sua realidade (Pereira, 1998:. 18).  Na Prosopopeia, o decurso das ações pode se assemelhar mais do que aos Lusíadas ao das ações da Eneida: saída da pátria, derrota no mar, guerra contra outra nação. Porém seu sentido é descendente. Não dispondo de ações épicas, Prosopopeia engendra conceitos épicos, que como previsível, acompanha os Lusíadas (Muhama, 2005:).

 

Documentos Manuscritos

Processo Inquisitorial contra o cristão novo Bento Teixeira de número 5206. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa.

 

Referências 

ALVES, Luís Roberto, Confissão, Poesia, Inquisição. Editora Ática, São Paulo, 1983.

COSTIGAN, Lúcia Helena; Intelectuais Pós Modernos e Letrados Barrocos (Criptojudeus) Globalização, Meio ambiente e Crítica de Oposição. In Revista do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Universidade Federal de Ouro Preto, número 4, Dezembro de 1997.

MUHAMA, Adma. O Prosopopéia de Bento Teixeira: epopéia de derrotas. in Literatura Portuguesa Aquém –Mar. Programa de Pós Graduação em Literatura Portuguesa. Editora Komedi, 2005.

PEREIRA, Kênia Maria de Almeida. A Poética da Resistência em Bento Teixeira e Antonio José da Silva, o Judeu. Editora Anna Blume. São Paulo, 1998.

RIBEIRO, Eneida Beraldi. Bento Teixeira e a Inquisição. Um Testemunho do Pensamento colonial. Maayanot, São Paulo, 2017.

SIQUEIRA, Sonia “O Cristão Novo Bento Teixeira: Cripto Judaísmo no Brasil Colônia”. Revista de História, São Paulo, volume XLIV, ano 90, abril/junho p. 395-467.

SOUSA, José Galante de, Em torno do poeta Bento Teixeira, IEB, São Paulo, 1972.

Duzentos Anos da Primeira Constituição do Brasil

[Artigo escrito por Neuma Brilhante Rodrigues professora doutora de História do Brasil na Universidade de Brasília (UnB).]

No dia 25 de março de 1824, foi outorgada a primeira Constituição brasileira. Naquele dia, na Capela Real, no Rio de Janeiro, o Imperador d. Pedro I e a Imperatriz Leopoldina juraram o texto constitucional, acompanhados por membros do Senado da Câmara do Rio de Janeiro e do governo imperial. Nos dias seguintes, foi determinado que cerimônias similares fossem promovidas pelas Câmaras Municipais e órgãos do governo. Entrava assim em vigor a carta constitucional brasileira mais longeva, vindo a ser revogada apenas em 1889, com o final do regime monárquico e a adoção da república no país.

Victor Meirelles, Juramento da Princesa Isabel. 1875 – Museu Imperial de Petrópolis

A carta de 1824 confirmou a organização do Brasil como monarquia representativa, católica e governada pela Casa de Bragança. Ela estabeleceu ainda a divisão de poderes, adotou o bicameralismo e estipulou amplos direitos fundamentais. No arranjo constitucional, garantias de direitos individuais e divisão de poderes foram equacionados com dispositivos centralizados na figura do Imperador, aspecto entendido como importante para se evitar a eclosão de guerra civil e a fragmentação do novo país. 

O texto foi elaborado pelo Conselho de Estado. Contudo, sua base foi o projeto que começara a ser discutido pela Assembleia Constituinte, dissolvida pelo Imperador dois dias antes da criação daquele Conselho, em novembro de 1823. Para entendermos o significado daquela cerimônia solene de juramento e da própria carta, assim, é preciso recuar um pouco na história brasileira, pois ela seria o ápice da breve experiência constitucionalista.

Marc Ferrez, Busto posado de Pedro I. Originalmente executado em gesso no Rio de Janeiro, ca. 1826; fundido em bronze em Paris por Fontaine. – Oliveira Lima Library

Em janeiro de 1821, notícias do Vintismo, movimento constitucionalista iniciado na cidade do Porto, em Portugal, chegaram em terras do então Reino Unido do Brasil, recebendo rápida adesão de membros das elites e do povo. Após o chamamento da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino de Portugal, foram criadas juntas de governo provisório nas províncias brasileiras, responsáveis pelas eleições de representantes para as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, que se reuniram em Lisboa, com a missão de elaborar uma constituição para os portugueses dos dois lados do Atlântico. 

O momento era de intensos debates sobre os princípios liberais e constitucionais e diferentes expectativas de futuro e marcado pela intensa ressignificação do vocabulário político.  O próprio termo Constituição era então ressignificado e, no mundo luso-brasileiro da década de 1820, ganhou destaque sua compreensão como norma prescritiva, ou seja, pragmática, que deveria orientar a construção de projetos de futuro do novo Estado Nacional. Assim, constituição era entendida como um sistema de normas capaz de garantir a observância dos direitos individuais, a construção de relações mais igualitárias e a afirmação soberania da nação.

A elaboração de arranjo institucional que fortalecesse os laços entes as duas principais partes do mundo luso-brasileiro pelas Cortes de Lisboa, contudo, fracassou e os desacordos quanto ao lugar que Portugal e Brasil ocupariam vieram a legitimar a independência do Brasil ainda em 1822, sob a liderança do então príncipe regente. 

Jean Baptiste Debret, Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil – Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement. 1816-31 – Oliveira Lima Library

A convocação para a assembleia constituinte no Brasil se deu em 3 junho de 1822, antes da formalização da independência. De fato, a formação de uma assembleia brasiliana era apresentada como complementar à ação das Cortes de Lisboa e não como separação formal em relação a Portugal. Contudo, diante ao crescente desgaste de parte das elites brasileiras frente às ações das Cortes lisboetas, essa ação fortaleceu a figura de d. Pedro como alternativa no caso da formalização da separação, o que viria a ocorrer na segunda metade daquele ano. 

A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império foi aberta em 03 de maio de 1823. Logo em seu início, foi criada a comissão da Constituição, formada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Antônio Luís Pereira da Cunha, Pedro de Araújo, José Ricardo da Costa Aguiar, Manuel Ferreira da Câmara, Francisco Muniz Tavares, e José Bonifácio de Andrada e Silva, com destaque para o primeiro. A comissão apresentou o projeto de constituição em setembro daquele ano, dando início aos trabalhos constitucionais propriamente ditos, uma vez que nos meses anteriores a Assembleia tratou da legislação infraconstitucional.

John Armitage, José Bonifácio de Andrada e Silva, The History of Brazil: From the Period of the Arrival of the Braganza Family in 1808, to the Abdication of Don Pedro the First in 1831 – Vol I. 1836. – Oliveira Lima Library

Desde as sessões preparatórias acontecidas em abril, a plenária foi palco de disputas sobre o papel do Estado, as liberdades individuais, os direitos de cidadão, operacionalização da justiça entre outros temas. Entre os pontos mais críticos estava o estabelecimento dos poderes, as relações entre eles e o lugar a ser ocupado pelo Imperador. O acirramento dos embates dentro da assembleia e entre o monarca e parte dos deputados levou ao já mencionado fechamento da constituinte por ordem do Imperador, com o apoio das tropas, que cercaram o prédio onde os deputados se reuniam.

Várias peças legais emitidas naquele contexto por d. Pedro I buscaram realçar o compromisso constitucional do Imperador, mas também sua primazia diante dos demais poderes. De certo modo, a própria constituição era apresentada com dádiva oferecida pelo soberano aos seus súditos. O decreto de fechamento da assembleia, de 12 de novembro, por exemplo, dizia: 

Havendo eu convocado, como tinha direito de convocar, a Assembléa Geral Constituinte e Legislativa,  (…) e havendo esta Assembléa perjurado ao tão solemne juramento, que prestou á Nação (…), hei por bem, como Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil, dissolver a mesma Assembléa, e convocar já uma outra (…) a qual deverá trabalhar sobre o projecto de constituição, que eu lhe hei de em breve apresentar; que será duplicadamente mais liberal, do que o que a extincta Assembléa acabou de fazer.  (…) (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1823, Página 85, Vol. 1. 

O novo projeto de constituição seria elaborado por Conselho criado com esta finalidade, no dia 13 de novembro, e que contava com seis deputados recém-destituídos entre os seus nove membros. Fortemente baseada no projeto anterior, a nova proposta foi encaminhada ainda em dezembro de 1823 às Câmaras Municipais, para análise e acolhimento de sugestões.

Segundo o Decreto de 11 de março de 1824, o Imperador resolvera marcar para o dia 25 daquele mês o juramento da nova constituição, em resposta solicitação de “tantas Câmaras do Império, que já formam a maioridade do povo brasileiro”. As manifestações favoráveis de dessas Câmaras, em particular, do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, enfim, foram usadas para legitimação da Constituição ao serem apresentadas como manifestação da vontade popular, em uma ritualística típica da noção de representação do Antigo Regime.

D. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

A Carta outorgada apresentou poucas, mas importantes, alterações em relação ao texto da constituinte. Quanto à divisão dos poderes, buscou-se reforçar a autoridade régia, com a inclusão do Poder Moderador e seu direito de dissolução da Câmara dos Deputados. Reafirmou o bicameralismo e o caráter vitalício do Senado, cujos membros seriam escolhidos pelo Imperador a partir de lista tríplice. Observa-se, contudo, alteração na forma de montagem da lista: o projeto original estabelecia que a mesma seria eleita pelos próprios senadores, enquanto a Constituição determinou a eleição nos mesmos moldes da escolha dos deputados, ou seja, pelos eleitores.

D. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

Outra alteração diz respeito à definição de quem seria cidadão no Brasil. O texto constitucional compreendeu que otítulo deveria ser atribuído a todos as pessoas livres (ingênuas ou libertas) nascidas no Brasil, enquanto o projeto definia a distinção entre brasileiros e cidadãos brasileiros, estes como detentores de direitos políticos. Segundo o Título 2º da Constituição, a distinção se daria entre cidadãos passivos, detentores de direitos civis, e cidadãos ativos, qualificados para exercer o seu poder político por meio do sistema eleitoral. A solução encontrada pelo Conselho de Estado partiu da compreensão de que a distinção entre cidadão ativo e cidadão passivo era como potencialmente transitória, uma vez que a sociedade política e a sociedade civil eram de mesma natureza, e estava de acordo com as expectativas de mobilidade social decorrentes do fim da sociedade estamental, além de localizar a igualdade entre os cidadãos nas expectativas do futuro do país.

Todo cidadão detinha, assim, poder político, mas este estava excepcionalmente suspenso para aqueles que não alcançavam os requisitos necessários para seu exercício. O exercício dos direitos políticos era assim definido a partir das noções de capacidade e merecimento, que, por sua vez, poderiam ser socialmente reconhecidos pela posse de bens ou por educação. A inclusão dos homens libertos no rol dos possíveis cidadãos ativos considerava a manumissão como prova de suas qualidades. Devemos enfatizar que o homem escravizado que alcançasse a liberdade e tivesse a renda necessária tornava-se, o que era vetado às mulheres, cuja exclusão do processo eleitoral era vista de modo tão natural que nem se encontrava  na constituição ou demais peças normativas que regulamentavam as eleições.

ID. Pedro I, Projeto de constituição para o Império do Brasil. 1823 – Oliveira Lima Library

Essa perspectiva, por exemplo, inibiu a legalização da discriminação da população por razões raciais, a despeito do preconceito de cor já marcar as relações sociais e institucionais no Brasil daquele momento. Isso fica evidente na listagem de direitos civis e políticos, apresentados no Artigo 179, no seu item 13, que afirma, como princípio, a igualdade da lei para todos e a admissão em cargos públicos a partir do critério único de talentos e virtudes. Pontuar tais princípios não significa ignorar as injustiças e favorecimentos ocorridos na vida cotidiana da sociedade brasileira, contudo, consideramos significativo ao considerarmos o caráter constituinte da lei.

Por fim, vale ressaltar que a já mencionada longevidade da Carta de 1824 está relacionada à sua plasticidade e adaptabilidade. Inspirada no constitucionalismo inglês, a carta definiu, em seu Artigo 178, que apenas era constitucional aquilo que dizia respeito “aos limites e atribuições respectivas dos Poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos.”  Assim, por ritos parlamentares ordinários, foram promovidas diversas reformas eleitorais, inclusive com a adoção da eleição direta, em 1881, foi criada a figura do Presidente do Conselho de Ministros, se atribuiu a condição de ingênuas a crianças filhas de mães escravizadas pela Lei Rio Branco (1871) e foi abolida a escravidão (1888). O Ato Adicional de 1834 veio a ser a única experiência de emenda constitucional por alterar a constituição do poder legislativo.

Referências 

BERBEL, Márcia & OLIVEIRA, Cecília Helena de Salle (org.) A experiência constitucional de Cádis. Espanha, Portugal e Brasil. Alameda: São Paulo, 2012.

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Sobre o Autor

Neuma Brilhante, professora doutora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), atua na área de História do Brasil Império. Suas pesquisas se concentram na formação e atuação de elites políticas em fins do Antigo Regime luso-brasileiro e formação e consolidação do Império Brasileiro.